« (...) Em português, Sexta-feira Negra não soa tão bem. E, no entanto, a formulação portuguesa consegue descrever melhor o espírito da data. (...) »
Adoptando mais uma vez a estratégia vencedora de instituir efemérides em estrangeiro, os estabelecimentos comerciais preparam-se para celebrar a Black Friday. Em português, Sexta-Feira Negra não soa tão bem. E, no entanto, a formulação portuguesa consegue descrever melhor o espírito da data. Mais uma vitória para a nossa língua, novamente superior às outras em termos de expressividade e precisão. Escuso de recordar que ingleses e franceses não sabem o que é quentinho nem devagarinho – e ninguém faz nada. Claro: eles sabem o que é quente e devagar. Mas quentinho e devagarinho é outra coisa, e passar pela vida sem saber a diferença parece-me inconcebível e cruel. «Toma este chá, que está quente», é um aviso; «toma este chá, que está quentinho», é um convite – e os falantes de línguas bárbaras não distinguem um do outro. Ora, a ONU não lança um plano, não elabora uma convenção, não manda capacetes azuis armados com gramáticas de português a França, a Inglaterra, a todo o lado. Há países em que as pessoas nunca vestiram um casaco quentinho, nunca fizeram nada devagarinho. Pior: num dia de Inverno, nunca ficaram no quentinho, até porque não fazem ideia de que quentinho também pode ser substantivo. Até quando, meu Deus?
Com a Sexta-feira Negra sucede o mesmo. Na nossa formulação ressoa a lembrança da peste, que é importante para prevenir os ingénuos em relação ao que os espera. Vai haver muito contacto físico com gente suada e furiosa, pode haver feridas abertas e transmissão de vírus. Está lá o negrume que alerta para a amargura gerada pela disputa de produtos, que avilta mesmo quando se ganha. Um dos aspectos mais intrigantes da Black Friday é que nenhuma loja se tenha lembrado ainda de construir uma tribuna na qual um imperador romano faz o sinal de polegar para cima ou para baixo, conforme o consumidor tenha ou não conseguido resgatar um LCD com 30% de desconto das mãos de outro. E a expressão Sexta-Feira Negra também contém uma referência subtil à obscuridade da cerimónia, seja porque as lojas oferecem 50% de desconto sobre os 50% de aumento que levaram a cabo na Quinta-Feira Incolor, seja porque às vezes se limitam a escrever a palavra “desconto” na etiqueta, sem retirar nada ao preço – uma operação de marketing que é também uma interessante lição de filosofia da linguagem.
Portanto, é por causa da língua portuguesa que eu, sempre que há Black Friday, fico em casa. No quentinho.
Black
N.E. — «"Viernes negro», alternativa a Black Friday» é a recomendação da Fundéu/RAE para o castelhano.
Crónica publicada em 6 de dezembro de 2019 na revista Visão. Texto escrito conforma norma ortográfica de 1945.